Os 3D da transição energética e os desígnios nacionais

Parte II - A hora D da Descentralização

Autor: Claudino Mendes, Ph.D.
Professor e Consultor especialista em Energias

O desenvolvimento tecnológico impulsionado pela revolução industrial entre os séculos XVII e XIX, motivou para a primeira grande transição energética a nível planetária. A exploração dos sistemas energéticos que antes era feita de forma descentralizada, local e em pequena escala, passou a ser centralizada, verticalizada e em grande escala, direcionada essencialmente a satisfação da necessidade de consumo nos transportes, na indústria e na produção de energia elétrica. Os recursos energéticos tradicionais como carvão vegetal, lenha, óleos vegetais, óleo de animais e óleo de peixe, foram substituídos pelo carvão mineral, petróleo, gás e outros combustíveis de origem fóssil.

Esse modelo de exploração prevalece até aos dias de hoje, com poucas alterações na matriz energética, privilegiando as grandes centrais de produção a base de combustíveis fosseis ou hídricas. Porém, essa tipologia de exploração do setor energético, com especial ênfase para o sector elétrico, tem acarretado constrangimentos diversos no que tange as perdas elétricas e a necessidade de avultosos investimentos em infraestruturas de expansão e modernização da rede. Por outro lado, a utilização de fontes convencionais não renováveis na produção de energia, tem aumentado exponencialmente as emissões de gases de efeitos estufas, causadores do aquecimento do planeta, consequentemente, agravando os impactos das alterações climáticas.

Acelerar a transformação energética

Face a esses constrangimentos, o novo paradigma imposto pelo 2ª era da transição energética, também chamada de “era dos renováveis”, ordena que a transformação do setor energético esteja alicerçada na exploração sustentável dos recursos, na massificação das energias renováveis, na descentralização da produção e na digitalização, como forma de preservar o ecossistema do planeta e de minimizar os efeitos das mudanças climáticas. Neste sentido, as tecnologias de energias renováveis, em combinação com a eficiência energética e a eletrificação, apresentam-se como excelentes aliados para uma transição sustentável do setor energético, principalmente nos países em desenvolvimento, mas também, como ótimos parceiros para garantir o equilíbrio da matriz energética e assegurar a descarbonização nos países desenvolvidos.

O desenvolvimento econômico sustentável é a motivação principal para transformação energética dos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (SIDS), onde se inclui Cabo Verde. Para além da vulnerabilidade climática, esses países carecem de riquezas naturais e minerais que lhes sirvam de moeda de troca, o que lhes impõem uma excessiva dependência da importação de combustíveis fosseis para satisfazerem as suas necessidades energéticas. Acrescido a essas debilidades estão os problemas inerentes a insularidade e a dimensão do mercado, que lhes deixam particularmente expostos as constantes flutuações do preço do petróleo e a volatilidade dos meios de transportes.

 

Portanto, a transformação energética precisa-se e tem de ser já. Apesar de um declínio sem precedentes nos custos de produção de energia renovável, impulsionado pelo avanço das tecnologias digitais e inteligentes, as energias renováveis, segundo dados na IEA, cobriram apenas 11% do total da energia consumida mundialmente em 2018, sendo necessário um crescimento de pelo menos seis vezes os valores atuais para se poder atender os objetivos climáticos globais almejados. Isso exigiria uma aceleração extraordinária no progresso do setor energético, com formas de produção e demanda mais flexível, com mais armazenamento e com sistemas de transmissão e distribuição mais robustas.

Dividir para conquistar

A descentralização mais do que uma escolha deve ser encarada como uma necessidade, pois permite uma exploração otimizada dos sistemas elétricos, disponibilizando várias alternativas de gestão desde a produção até ao consumo. Através das unidades de microprodução, de baterias, ou de pontos de carregamento de veículos elétricos, o sistema elétrico tem a possibilidade de ajustar o perfil da demanda em função do sinal do preço, ou integrar as unidades de armazenamento, como recurso energético ou como carga variável, conforme o pico ou vazio da curva de consumo. Portanto, a descentralização não só contribui para uma economia de zero carbono, mas também, e de forma significativa, para a competitividade da economia local, uma vez que impacta diretamente na redução da fatura de energia dos consumidores individuais, para além de proteger as empresas e indústrias contra as variações dos preços da eletricidade.

A descentralização vem colocar o consumidor no centro da transição energética, priorizando a massificação das energias renováveis, mas também, considerando todos os recursos energéticos ao dispor do setor, onde as microunidades de produção residências, a forma como locomovemos e utilizamos a energia elétrica são componentes importantes do processo. A descentralização não se aplica apenas a geração distribuída (GD), mas sim, ao aproveitando todos os recursos enérgicos distribuídos (RED), incluindo o armazenamento com baterias, o serviço da responda da demanda, o sistema de carregamento de veículos elétricos e os sistemas de aquecimento, e podem acoplar tanto as tecnologias renováveis, como as não renováveis, tais como: painéis fotovoltaicos, turbinas eólicas, biomassa, geotérmico, hidroelétricas ou hidrogénio.

Porém, a geração distribuída (GD), conceito aplicado a pequenas unidades de produção elétrica conectadas a rede de distribuição ou diretamente acoplada ao sistema de contagem de um consumidor que inclui fontes de energias renováveis e unidade de cogeração, desempenha um papel preponderante para a sustentabilidade do setor. A nível do sistema elétrico, para além de permitir integrar energias limpas, aproveitando os recursos endógenos, pode beneficiar toda rede de transmissão e distribuição, através da redução das perdas elétricas e da minimização dos custos associados a exploração destas. Do lado do consumidor, o autoconsumo através de pequenas unidades de microproduçao permite aos prosumidores (consumidor/produtor) e as comunidades de energias terem um papel ativo na gestão da rede e na redução dos seus custos de produção, podendo produzir, consumir, partilhar, armazenar e vender energia elétrica.

Se por um lado, a liberalização do mercado elétrico e o aperfeiçoamento das tecnologias digitais permitiram um crescimento significativo dos sistemas de geração distribuida, com especial enfase para os microsistemas de produção para autoconsumo, por outro lado, os recursos energéticos distribuidos permitiram redesenhar o mercado elétrico liberalizado e criar novo modelos de negocios de eletricidade, como por exemplo, a Comercialização Agregada, que é um conceito de mercado onde existe uma figura chamada de agregador ou facilitador das relações comerciais entre o produtor (cliente) e vendedor (retalhista), com intuito tenta minimizar custos para consumidores e maximizar os proveitos dos produtores, a Comercialização entre pares (peer-to-peer), que é um conceito que se aplica a uma fração do mercado, onde indivíduos conectados à rede, comercializem eletricidade diretamente entre si, e Energy-as-a-service, que é um submercado de venda não apenas de energia, mas também de tecnologia, análises, serviços personalizados e até mesmo de acesso à rede.

A descentralização e a sustentabilidade energética nacional

A par dos transportes, o setor elétrico em Cabo Verde e em grande parte dos países da SIDS, tem sido o principal entrave para o cumprimento dos objetivos do desenvolvimento sustentável e do acordo de Paris, no que tange a sustentabilidade energética e ambiental. Os sistemas elétricos continuam fortemente dependente de combustíveis fosseis importados e a sua tipologia de exploração permanece unidirecional e muito centralizada, tanto na geração como na operação, exceptuando algumas mini-redes isoladas, que dão vazão a demanda energética em pequenas localidades remotas, com difícil acesso a rede pública. 

A participação das energias renováveis na matriz energética nacional está um pouco aquém das metas e objetivos traçados no Plano Diretor do Setor Elétrico (PDSE) e na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) acordados na conferência de Paris. Aproximadamente 20% das energias produzidas em Cabo Verde provém das energias renováveis – longe dos 50% comprometido para o ano 2030. Portanto, é necessário encurtar a distância entre a retórica e a ação e acelerar os processos, aumentando os investimentos na produção dispersa de energias através das renováveis, incentivando a eficiência energética e apostando na eletrificação dos transportes.

As perspectivas são animadoras, são vários as ações e projetos em andamento ou em pipeline que visam a descentralização do setor, entre as quais: os parques solares fotovoltaico de 10MW e 5MW na Calheta de São Miguel e em Sal Rei, na ilha da Boa Vista; os sistemas de armazenamento com baterias de 1MW BSSE na ilha do Sal; a criação de condições legais e de incentivos para a microprodução renováveis; a aposta nos veículos elétricos; e os projetos de eficiência energética em equipamentos e edifícios. Brava 100% Renovável é um projeto bastante promissor, que já está em fase de estudos e que pretende satisfazer a ilha apenas com energias renovaveis, suportado com tecnologias de armazenamento à base de baterias.

A microprodução, particularmente, tem merecido alguma atenção, pois é vista como uma oportunidade de aumentar o contributo das energias renováveis no mix energético nacional e de reduzir a dependência energética nacional, ao mesmo tempo que auxilia os consumidores na redução das suas faturas energéticas. O Decreto-Lei nº1/2011 e o Decreto-Lei nº 54/2018, foram criados para promover e incentivar a produção elétrica a partir de fontes de energia renováveis, quer de forma centralizada, quer através de geração distribuída, em larga ou em pequena escala, de maneira a aproveitar o potencial solar e eólico que o arquipélago proporciona. Efetivamente, tem-se verificado acréscimos nos projetos de micro e mini produção renovável, tanto para autoconsumo conectado à rede, como para sistemas autônomos. São cada vez mais os sistemas fotovoltaicos instalados nas residências, nos edifícios públicos e privados e nos projectos de bombagem e de rega na agricultura.

Desafios

Esse novo paradigma do setor energético, onde os sistemas eléctricos são mais flexíveis e descentralizados, traz enormes desafios, no que tange ao planeamento e a otimização dos recursos, tendo em conta que passam a lidar com demandas maiores e mais diversificadas, bem como, um crescente número de pequenos produtores. Essa transformação do setor, requer uma visão transversal do processo de transição energética, por forma a evitar repercussões econômicas e sócias indesejadas, uma vez que, a ausência de sincronização entre o sistema convencional atual e as novas formas de produção e utilização de energia, iria dificultar a integração de energia renovável, aumentar as desigualdades sociais e incrementar ainda mais os custos de eletricidade.

Desta feita, para que a transformação energética tenha impacto, será necessária uma abordagem holística dos compromissos assumidos, com ações organizadas e estruturadas, abarcando os vários componentes da transição energética, desde políticas e estruturas de mercado, até as opções de tecnologia e capacitação. Para além das políticas e dos planos estratégicos, é imprescindível criar estruturas e enquadramento legais que os suportam. Portanto, é preciso adotar normas, padrão e tecnologias que possam auxiliar na regulação e na fiscalização da sua implementação, sem descurar uma aposta efetiva na investigação e na capacitação humana, como forma de garantir a continuidade e a sustentabilidade dessas ações.