Os 3D da transição energética e os desígnios nacionais
Parte III – Digitalizar para otimizar
Autor: Claudino Mendes, Ph.D.
Professor e Consultor especialista em Energias
As alterações climáticas são efeitos da reciprocidade do planeta face a nossa ação dilapidador para com ele. A consciencialização de como o nosso modo de vida tem afetado a sustentabilidade do planeta, consequentemente a nossa própria sobrevivência, é fundamental para que possamos adotar medidas e ações concretas para a reversão dos danos que essas alterações têm provocados. Foi com o propósito de reduzir os impactos das alterações climáticas e manter a temperatura do planeta abaixo dos 2ºC que um grupo de países, reconhecendo que os gases com efeito estufa são um dos principais causadores do aquecimento global, acordaram, através do tratado de Paris, em cortar 55% das emissões dos gases com efeito de estufa até 2030, e tudo fazerem para uma descarbonização total do setor energético até 2050. Pois, caso nada for feito, estima-se que o aumento de temperatura do planeta atinja os 3ºC até ao final do século, com impacto devastador para as próximas gerações.
Para que a descarbonização do setor energético seja impactante, segura e sustentável, é fundamental que o processo de transição energética esteja alavancado em 3 pilares – Descarbonização, Descentralização e Digitalização – priorizando a utilização das energias renováveis, a eficiência energética, a eletrificação, e as tecnologias digitais. Neste particular, a Digitalização desempenhando um papel imprescindível na materialização dos outros dois D. A digitalização, mais de que nunca, deverá ser encarado pelas concessionárias e pelos demais stakeholders, como uma oportunidade de transformar o sistema elétrico tornando-o multidirecional, responsivo e integrador. Esta importância ficou bem evidenciado neste período de pandemia, onde a ascensão do consumo residencial não consegui contrapor a redução drástica do consumo comercial e industrial, e onde as dificuldades na cobrança das faturas, na leitura e ligação de contadores, no planeamento da rede e na previsão de cargas, puseram a nu a fragilidade do setor.
A digitalização do setor energético
A utilização de tecnologias digitais no setor elétrico remonta os anos 70, inicialmente, como forma de facilitar a gestão e a operação da rede, e de minimizar a sua necessidade energética, as indústrias pesadas apostaram na automação de todo o seu processo de controlo. Hoje, as empresas de gás e petróleo têm utilizado tecnologias digitais para melhor na tomada de decisão, tanto na exploração como na produção, e sistemas inteligentes, com base em tecnologias digitais, têm sido utilizados para melhorar a eficiência, a segurança e confiabilidade do setor.
Os novos desafios que a transição energética impõe obriga a que o setor adopte novos conceitos ligados a Indústria 4.0, Internet da eletricidade (IoE), Inteligência Artificial (AI) ou Big Data/Analitics. Investimentos em tecnologias como grid analytics, cloud computing ou SCADA permitem analisar o comportamento dos consumidores, aprimorar as operações na rede, melhorar a previsão de carga e otimizar o despacho, para além de permitir uma participação ativa dos consumidores na gestão da rede, através da resposta da demanda, de eficiência energética, da gestão dos seus recursos ou através de veículos elétricos.
Os benefícios da digitalização são reais e concretos para os operadores da rede, permitindo: otimizar a produção, facilitar as operações de prevenção e manutenção do sistema, atuação em tempo real na gestão das cargas diversificadas, melhorar supervisão e identificação de erros e fraudes, otimizar a eficiência energética e a gestão de integração de renováveis. Também para os consumidores, a digitalização possibilita-os: gerir o seu consumo em tempo real, vender o excedente de produção dos microprodutores residenciais ou comunitários, mudar de tarifas ou pagar as faturas sem sair de casa.
As Smart Grid e as Smart City são reflexos dessa transformação digital, onde os objetos, eletrodomésticos, casas e carros, estão conectados – Internet das Coisas (IoT) – fornecendo uma gama de serviços e aplicações, aplicadas a saúde, redes elétricas, vigilância, automação residencial e ao transporte. A proliferação de smart meters e de dispositivos de controle interconectados, aliado ao processamento da informação por eles gerada, possibilitam aos principais stakeholders do setor elétrico, reguladores, operadores da rede, produtores, distribuidoras, comercializadoras, consumidores e prosumidores, otimizarem os seus interesses.
Paralelamente, a digitalização tem criado novos modelos de negócios, gerando novos empregos e impulsionando o crescimento econômico. Neste quesito, a tecnologia blockchain, tem tido um papel importante. Um mercado de energia pode ser construído via blockchain usando contratos inteligentes no estilo Uniswap (um protocolo de criação de mercado automatizado – AMM). O Blockchain Energy Tracking – dispositivo para o certificado de origem de energia limpa – tem sido muito utilizado para registo, em tempo real, da energia trocada entre o prosumidor e a rede pública.
Porém, apesar dos enormes benefícios da transformação digital, o processo de digitalização é complexo e desafiador. Acrescido aos riscos inerentes à segurança e à privacidade, esses novos modelos de negócio provocam rupturas no mercado, nos negócios e nos empregos, contrariando os modelos clássicos centenários que até agora vigoram. Os policy makers passam a lidar com novas e complexas informações na tomada de decisão, para além da necessidade de lidar com os ativos de longa duração e as grandes infraestrutura física que compõem grande parte dos sistemas de energéticos.
Os desafios nacionais
O setor elétrico, longe de atingir os propósitos ambicionados para transição energética, tem recebido importantes investimentos, com o intuito de converter o sistema atual numa rede elétrica inteligente – Smart Grid – a nível de controlo e supervisão da rede e dos sistemas de produção; a nível da mediação e contagem; ou a nível da interação com os consumidores, na cobrança e pagamento das faturas.
O sistema SCADA (Supervisory Control and Data Acquisition System) pretende revolucionar a forma como o despacho tem sido feito até agora, “vai aperfeiçoar a eficiência na distribuição e permitir uma melhor articulação entre a produção e a distribuição da energia eléctrica”. Os investimentos em contadores inteligentes – Smart meters – integrados nos Postos de transformações (PT) dos principais centros urbanos, tem sido de uma grande valia para os gestores da rede, principalmente no controlo do fluxo de energia e na detenção das perdas na rede. A integração massiva de energias renováveis, quer em grande escala, quer da microprodução, são apostas tecnológicas que têm impulsionado a descarbonização do setor, garantido maior estabilidade da rede, para além de minimizar a dependência energética do país.
Porém, Smart Grid é um conceito muito mais abrangente que para além dos investimentos já feitos, deve-se apostar em tecnologias digitais para monitorização e controlo, bem como em tecnologias de comunicação e informação. A estes, deve-se ainda criar um conjunto de serviços e soluções que estas tecnologias disponibilizam quando associados a IoT, AI, Blockchain ou Data Analytic, como por exemplo, AMI, que permite conectar e desconectar os clientes; fazer leitura e cobranças remotamente e em tempo real dos contadores; permitir que os clientes monitorizem os seus consumos e pagarem as suas faturas através dos seus dispositivos móveis; ou Demand Response, que possibilita uma participação mais ativa dos consumidores no sistema e, de forma bidirecional, que os prosumidores possam trocar energias com a rede pública através dos seus sistemas de microprodução.
O crescimento da digitalização tem sido extraordinário, no entanto, a velocidade com que essa transformação digital está a acontecer, tem limitado as respostas aos apelos dos principais setores econômicos. As solicitações do mercado moderno requerem modelos de negócios alicerçados na produtividade, eficácia e celeridade. Os consumidores nacionais estão cada vez mais exigentes, mais específicos e querem os seus serviços e produtos disponíveis “agora”. A digitalização é um processo dinâmico e transitório. O que ontem era inovador hoje já é retrogrado e obsoleto. Por isso, é fundamental investir em tecnologias maduras, mas também apostar em soluções endógenas através da investigação, desenvolvimento e inovação, criando um ecossistema que envolve a sociedade no seu todo, desde as universidades, passando pelas empresas, até ao consumidor comum.
A digitalização do setor energético para países em desenvolvimento com parcos recursos naturais, como é o caso de Cabo Verde, não é uma opção, mas sim uma necessidade. Apesar das tecnologias digitais desempenharem um papel muito importante no esforço para a descarbonização, é necessário investir em sistemas de comunicação seguras e confiáveis, mas também é preciso adaptar a legislação e a regulamentação aos novos padrões para que a transição energética possa ser plena e efetiva.